Do exílio ao sucesso. Dexter, Oitavo Anjo, é testemunha viva do hip hop brasileiro. Assim como outros de sua geração, enfrentou o racismo e o preconceito para mostrar a força do rap em um país no qual a desigualdade impera. O esforço foi reconhecido e, hoje, aos 48 anos, ele é um dos grandes rappers da música brasileira.
Mas a trajetória não foi fácil. A história de Marcos Fernandes de Omena começa em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, onde viveu sua infância no bairro Jardim Calux. Ainda adolescente, formou o Snake Boys, seu primeiro grupo de rap. Aos 18 anos, assumiu o nome com o qual se tornaria famoso: Dexter, inspirado pela história de um dos filhos de Martin Luther King.
O próximo grupo de rap que viria a formar se chamaria 509E, sigla que identificava a cela que Dexter dividia na Casa de Detenção de São Paulo, o famoso Carandiru. O rapper passou ali 13 anos. Foi de dentro do presídio que o grupo – formado em parceria com Afro X – lançou o álbum “Provérbios 13” e tudo começou a mudar. Dexter sobreviveu ao que ele chama de exílio e reconquistou a liberdade para viver, sonhar e inspirar muita gente.
Hoje, o rapper desenvolve projetos sociais focados na ressocialização de infratores e ocupa um lugar ímpar na história musical brasileira. Ele também interpreta CD, na série “Pico da Neblina”, da HBO Max. Por todo esse percurso, o hip hop se manteve como um farol, dando rumo e ajudando a superar os momentos mais difíceis. Por isso, quando perguntado sobre a essência do rap e do hip hop, Dexter não hesita: “Salvar vidas, essa é a essência”.
O show de Dexter acontece no domingo (5) e fecha a programação do “Campão Cultural – I Festival de Arte, Diversidade e Cidadania”. Aproveitamos a sua vinda para Mato Grosso do Sul e trocamos uma ideia com o rapper, que falou sobre a sua história, sobre música, arte e sociedade. Confira a entrevista:
Campão Cultural – Qual é a importância que o rap e o hip hop ocupam na tua trajetória?
Gigantesca, né? O rap me deu uma formação absurda. Eu digo pra você que o rap me formou muito mais do que a escola convencional. Isso é certeza, é fato. Porque ele tem um atrativo a mais. Ele conta histórias de uma maneira especial, a história do mundo, de pessoas. Quando você também é vítima desse sistema, tudo isso te convence de uma maneira muito especial, tudo isso te coloca num lugar muito especial, né? Num lugar de visibilidade que é o contrário do que o sistema faz. Por isso a importância do hip hop, que é essa cultura que salva vidas no mundo todo, é gigantesca. É de uma transformação muito especial na minha vida, ela me trouxe amor, ela me deu a chance de ser alguém, morô? Então é isso, sabe, é uma coisa gigantesca. Eu não sei o que seria de mim se não fosse o hip hop, em especial o rap.
As referências bíblicas estão presentes na sua música, no nome que você escolheu. Por quê?
Eu venho de um berço evangélico, mano. Hoje eu entendo o que é ser evangélico no Brasil, mas eu não estou falando da pessoa evangélica, eu estou falando da Palavra. Ela pode ter sido mexida, mudada, sabotada. Mas tem muita coisa dentro do livro, da Bíblia, que serve pra gente no dia a dia. A religião em si salva vidas também. Eu não posso deixar de dizer que a religião também salva, entendeu? Quando eu passei na prisão, eu vi muita gente sendo salva pela religião. Então, essa é minha ligação, a citação da Palavra nas minhas letras é isso. Eu ter lido a bíblia, ter lido muitos livros da bíblia, ter sido criado em berço evangélico e também ter visto a religião salvar muita gente. Eu creio que cada um de nós tem um Deus e eu tenho o meu.
Você participa do clipe Mil Faces de um Homem Leal (Marighella), dos Racionais MC’s, e esse ano um filme sobre Marighella chegou aos cinemas. São quase dez anos entre um e outro. O que aconteceu com o Brasil nesse tempo?
Andamos pra trás, né? Infelizmente, andamos pra trás quanto à gestão federal. O governo passado saiu deixando três milhões de desempregados, o que já é um descontentamento total. Mas hoje a gente tem 19 milhões de desempregados, não sei quantos milhões passando fome, comprando carcaça que hoje no açougue está de 13 a 14 reais. A gasolina está 7 reais em determinados lugares. Eu nem sei o que te dizer. O que eu sei, o que eu tenho certeza é que esse governo não representa em nada o povo brasileiro, em nada. É uma involução total. O filme sobre Marighella vem pra representar. Marighella, o filme, retrata uma época na qual a gente lutava contra esse mesmo sistema de hoje, com um certo disfarce, porque nós vivemos em uma democracia. Porém nós sabemos que se a gente moscar, ele implanta a ditadura de novo. É um governo que não representa em nada o povo preto, pobre, brasileiro.
Como é sua relação com a nova geração do rap nacional? Você gravou “Voz Ativa” com Djonga e Coruja BC1, como foi isso?
Essa geração, ela tem mais subsídios para poder fazer a diferença. E ela aproveitou, soube fazer. Uma coisa é fato, os moleques empreenderam de uma forma diferenciada, eles tiveram condições pra isso. A tecnologia, a aceitação, eles fizeram com que o rap fosse um pouco mais aceito. Agora, existe um outro lado dessa história que me entristece um pouco. Com poucas exceções, como o próprio Djonga e o Coruja BC1, o Síntese, algumas mulheres. O que acontece é que a responsabilidade de fazer hip hop, rap, ela infelizmente também foi deixada de lado, a responsabilidade de querer mudanças. A responsabilidade, o amor também, de manter viva a essência do hip hop, ela foi um pouco esquecida nessa nova geração.
O que é essa essência?
O que é a essência do hip hop? Salvar vidas. Única e exclusivamente, salvar vidas. Quando eu falo de droga pra caralho, de bebida pra caralho, eu não tô preocupado em salvar vidas. Entendeu, malandro? Quando eu falo de putaria pra caralho sem falar da preservação, morô, de usar camisinha. A aids está aí, as doenças venéreas. O álcool mata. Droga demais mata pra caralho, entendeu? É disso que eu estou falando. O hip hop se preocupa em salvar vidas, não em destruir vidas.
Quando deixou o cárcere, você começou um trabalho social chamado “Como vai seu mundo”. Como está o projeto?
Ele se tornou um projeto itinerante. Depois que eu saí do presídio, a gente ainda conseguiu ficar mais um ano e meio. O juiz da comarca na época foi chamado para integrar um outro corpo e a juíza que entrou no lugar dele não deixou a gente continuar com o projeto, ela não acredita na ressocialização de quem está privado de sua liberdade. E tem muito juiz que pensa isso também. Eu acho que o sistema carcerário foi criado para ressocializar, mas não é isso que acontece e quando você tem um projeto dessa magnitude, dessa grandiosidade, que está ali fazendo a diferença, mostrando para as pessoas que de fato o crime não vale a pena, que o grande lance é ser um cidadão, ele é simplesmente extirpado. Foi isso que aconteceu com nosso projeto. Ele se tornou um projeto itinerante, mas com a pandemia ficamos impedidos de entrar nos presídios, então espero que no ano que vem a gente consiga voltar. E não tem somente esse projeto, né? Eu sou padrinho do projeto Responsa, que ajuda egressos do sistema prisional.
E quais são os planos para 2022?
Existem muitas coisas para acontecer no ano que vem. Disco novo, livro que era para ter saído em 2020, mas infelizmente por conta da pandemia, a gente não conseguiu. Enfim, é isso. Projetos relacionados à música, à troca de ideias.
O livro conta a tua história?
O livro conta uma parte da minha história, é um livro parcial. Não é uma biografia, mas conta um determinado momento da minha vida, sobretudo o período na cadeia, sobretudo o que o sistema carcerário oferece ou não oferece para a ressocialização de quem tá lá dentro, enfim, é um período, não é uma autobiografia, sabe? Então é isso, a gente tem muita coisa pra fazer, sobretudo porque a pandemia tesourou muita coisa que a gente tinha idealizado nos anos de 20 e 21, mas estamos retomando.
Como vai ser o show de domingo, o que o público de Campo Grande pode esperar?
Ah mano, a gente está voltando, então a gente está muito feliz. Lógico que com todos os cuidados que a gente tem que ainda tomar, a gente está muito feliz de poder voltar, de ver o nosso público ali cantando com a gente. Está sendo muito emocionante subir no palco, as pessoas estão precisando disso também. Então, o que que eu espero de Campo Grande, eu espero muita alegria, muita felicidade, muita emoção, quero que todo mundo esteja muito feliz, que todo mundo cante todas as músicas. A gente idealizou um repertório desde os primeiros até os últimos discos, fizemos um compilado de todos eles. E assim, cara, a gente espera que todo mundo goste. Estou recebendo muita mensagem carinhosa daí, quero agradecer antecipadamente as mensagens que estão chegando nas minhas redes sociais dos fãs daí, dizendo que vão estar lá, que vai ser um grande show, eu acredito nisso também. O que eu quero dizer para vocês é que a gente está indo com muito amor, com muito carinho.
Quer adicionar algo?
Quero agradecer o convite da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul. Eu quero agradecer todo esse carinho, quero agradecer não só a produção, mas todos os fãs que já estão mandando mensagens e estão dizendo que vão estar com a gente no dia do evento. Domingo vai ser um grande dia, promete! E eu quero poder retribuir esse carinho de vocês com muita música, muito amor e muito carinho também, que é o que a gente saber fazer, né?
Texto: Thiago Andrade
Fotos: Divulgação