Visto como uma abordagem crítica a nobreza da pecuária e seu feudo nos anos de 1960/70 e provocativo, de certa forma, ao personificar o boi a um general em plena ditadura, a bovinocultura do artista plástico campo-grandense Humberto (Augusto Miranda) Espindola ganhou o mundo e deu vazão às artes de Mato Grosso uno, em um tempo de isolamento do oeste brasileiro, expondo nas bienais internacionais de Paris, Veneza, Medellin, Havana, São Paulo…
O processo de transformação cultural de Mato Grosso e, com a divisão de 1977, Mato Grosso do Sul, pelo viés das artes plásticas, está intrinsicamente ligado ao movimento do qual Humberto Espindola liderou naqueles anos ao lado da também artista-plástico Aline Figueiredo. Ambos organizaram a Primeira Exposição dos Artistas Mato-Grossenses, em Campo Grande, onde fundam, em 1967, a Associação Mato-Grossense de Arte.
Uma das personalidades homenageadas nesta segunda edição do Festival Campão Cultural, Espindola, 79 anos, foi “provocado” a participar de uma roda de conversa – ou bate-papo, como ele assim definiu – para falar da sua trajetória de sucesso numa região dominada pela oligarquia. “Como é ser artista visual no Brasil profundo”, realizado na Casa de Ensaio, na quarta-feira, trouxe à tona também um outro lado do artista: seu amor à terra natal.
“Divisão não foi democrática”
Jornalista, entre um querer pela arquitetura e o desejo do pai de se tornar advogado, o artista começou a pintar desde os 13 anos, já morando em São Paulo com os avós, desiludiu-se momentaneamente pelas artes e retomou a paixão pela pintura aos 20 anos ao conhecer Aline Figueiredo, pantaneira guerreira e de talento reconhecido. “Eu desenhava desde garoto, até com uma mangueira, quando lavava a calçada de casa, criando figuras no muro. Depois, já adolescente, cheguei a escrever poesias motivado por algumas paixões malucas”, disse.
Diante de uma plateia eclética e várias gerações, entre estudantes, ativistas culturais, escritores, artistas plásticos, velhos amigos e filhos, Espindola, em certo momento da narrativa impressionista, abordou esse “Brasil profundo” com uma dose de confiança no futuro da sua cidade e do Estado. “Hoje somos chamados de mega-oeste, vi isso na internet. O futuro é aqui, o início do Brasil novo. Campo Grande é uma cidade ansiosa de ser grande e nós campo-grandenses temos muito disso. Foi uma cidade papelão, lá atrás, agora se recupera, tanto cultural, como social, e o momento principal está chegando”, aponta.
Com raízes profundas na sua terra, demonstrou rancores guardados com a forma como ocorreu a divisão de Mato Grosso “numa canetada do (general Ernesto) Geisel”, presidente do Brasil, período em que residia em Cuiabá. A ruptura territorial aflorava com os movimentos políticos e culturais, desde os anos de 1930, “mas não foi democrático”, na sua opinião. Ele passou isso para as telas, não sofreu repressão explícita, mas teve muitos quadros sucumbidos nos porões…
“Sou feliz por viver aqui”
Apesar do descontentamento divisionista, Espindola focou sua arte, já conhecida e badalada pelo mundo pela forma como explorava o tema do boi, visto como símbolo da riqueza de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul – e agressivo para a época: que plástica tem o boi? Em bovinocultura, segundo a crítica, realiza um retrato sarcástico da sociedade do boi, que era principal moeda e símbolo de poder.
“Eu vi Campo Grande crescer, vivi toda essa transformação, lembro da rua 7 de Setembro, onde haviam os prostíbulos. Meus pais e minha vó não deixavam a gente passar por lá, e quando deixava, tinha que andar no meio da rua, sem olhar para os lados. Eu nasci aqui, sai e voltei e resolvi ficar, poderia ter saído pelo mundo, Nova York, Paris. Minha mãe foi um paraquedas para puxar tantos artistas para essa terra. E estou feliz por estar aqui e ter uma história para contar”, narra.
Sobre a bovinocultura, Humberto Espindola disse que depois de vários experimentos decidiu retratar o modo de viver de Mato Grosso, que girava em torno do boi branco (nelore), principalmente no lado Sul. “Foi uma fórmula mágica”, comentou, sempre creditando os avanços das artes nos dois Mato Grosso a “companheira de batalhas” Aline Figueiredo. “Colocamos as artes da região no mapa do Brasil, vencendo as barreiras do isolamento”.
“A pintura é minha meditação”
Segundo a crítica, Espíndola humaniza o boi, para denunciar a vontade de poder do ser humano, como ocorre em a tela O Tirano (1984). Maria da Gloria Sá Rosa, que foi sua professora no ginásio e ícone da cultura sul-mato-grossense, definiu: “uma vez mais na obra de Humberto Espíndola, o boi é motivo de abordagem de problemas atuais”.
Membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras (cadeira 38), Humberto Espindola ainda está na ativa – “a pintura é minha meditação, vida, fico em outro plano” – e finaliza um terceiro livro, “Digressões”, de contos biográficos e memórias dos anos 40-60 vividas em Campo Grande, São Paulo, Cuiabá e Curitiba, onde se formou em jornalismo. “São minhas histórias, da família, dos irmãos, casos de casa. Não sei até onde tem verdades e mentiras”, ironiza.
Texto: Sílvio de Andrade
Fotos: Altair Santos