Uma das melhores maneiras de conhecer uma cidade e seus detalhes é andar a pé. Na correria do dia a dia, de dentro do carro ou do transporte público, fica difícil ter tempo e olhos para se prender aos detalhes ou perceber as riquezas que estão pelo caminho. Foi com o intuito de conhecer Campo Grande de forma diferente que o professor, historiador e arquiteto João Santos organizou o projeto “Campão a Pé”, que convida turistas e moradores locais a explorarem os pontos históricos da cidade em uma caminhada repleta de conhecimento e surpresas.
Na manhã deste domingo (10), João realizou mais uma edição desse tour, dessa vez dentro da programação da segunda edição do Campão Cultural. A proposta foi conhecer a fundo o Complexo Ferroviário, um local de grande valor histórico e arquitetônico e que faz parte do dia a dia campo-grandense.
A ferrovia chegou a Campo Grande em 1914, em um momento em que o país passava por um grande processo de modernização. A Noroeste do Brasil ligava Bauru (no interior de São Paulo) a Corumbá (na fronteira com a Bolívia), interligando essa região do país que ainda era esquecida ao litoral e aos grandes centros. Com a ferrovia chegando e se instalando, todo um ecossistema surgiu ao seu redor. João apresentou o Complexo Ferroviário aos participantes do passeio, comparando-o a uma pequena cidade, com seus estratos sociais e também com toda a estrutura que os trabalhadores da ferrovia necessitavam. Com a privatização da ferrovia, em 1996, a existência e a conservação do Complexo foram colocadas em xeque e houve a vontade da população para que cuidados fossem tomados. “Sua importância é tamanha que ele foi completamente tombado em três esferas, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), pelo Governo do Estado de Mato Grosso do Sul e pela Prefeitura Municipal de Campo Grande”, explicou João. Hoje, ele é um dos complexos ferroviários mais coesos do Brasil, mantendo suas características como conjunto arquitetônico bastante preservadas.
Pelos caminhos da história – O ponto de partida da caminhada foi o Monumento Maria Fumaça, que é uma homenagem ao Complexo Ferroviário, o grande motivo do passeio. Ele compreende o espaço de 22 hectares, 135 imóveis, além dos diversos trilhos, viadutos e bens móveis e imóveis que o compõem.
A primeira parada foi em uma casa localizada na Orla Ferroviária, logo atrás da Maria Fumaça e que chama a atenção pela sua beleza. Ela foi a primeira construção de alvenaria do complexo e hoje encontra-se inteiramente conservada. É possível observar que em sua estrutura foram utilizados até mesmo os próprios trilhos. Logo depois, atravessando a avenida Mato Grosso, o grupo chegou a um dos prédios mais icônicos da Esplanada Ferroviária: a casa do Engenheiro-Chefe. Construída na década de 1930, hoje ela é utilizada ocasionalmente como Gabinete da Prefeitura Municipal de Campo Grande. Construída em um terreno amplo, com um grande jardim, ela apresenta um estilo arquitetônico inspirado nos europeus. “Isso porque os engenheiros normalmente não eram brasileiros”, explicou João. Com esse prédio, é possível perceber como o Complexo Ferroviário era estratificado socialmente. O professor explicou que em frente à estação, moravam os funcionários do mais alto escalão da companhia, como engenheiros e pessoas em cargos de chefia. “Havia um status em se morar ali, pois quem frequentava a estação eram pessoas de maior poder aquisitivo, que podiam viajar. A estação era onde a vida social da cidade acontecia”, pontuou.
A estação em si é uma construção digna de atenção, composta por um pavilhão central e duas alas laterais. Em sua fachada, o relógio – um dos poucos da cidade, em 1914 – marcava as horas para quem chegava ou partia. Hoje, o salão que acompanhou tantas idas e vindas, é a sede da AFAPEDI – Associação dos Ferroviários, Aposentados, Pensionistas, Demitidos e Idosos. As alas laterais também foram ressignificadas, o antigo armazém de mercadorias, tornou-se o Armazém Cultural e a estação também dá lugar a um ponto de cultura, com a Casa de Vidro e seu espaço externo.
A caminhada então chegou às ruas perpendiculares à Estação: a rua Doutor Temístocles e a General Mello. “Aqui viviam funcionários intermediários, por isso temos casas menos generosas, menos ornamentadas, mas ainda com detalhes lindíssimos como os ladrilhos hidráulicos”, apontou o professor. No caminho, o grupo passou ainda pela antiga sede administrativa da Noroeste do Brasil, onde hoje se encontra a sede do IPHAN, que está sendo restaurada, e a antiga escola dos filhos dos ferroviários, que hoje abriga a sede do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU/MS).
A próxima parada foi a rua Doutor Ferreira, a conhecida vila de casas geminadas, onde viviam os funcionários que trabalhavam pegando no pesado na estação. O professor apontou que as casas não têm recuo frontal como as anteriores e, as que mantiveram suas características originais, têm tijolos aparentes e poucos elementos decorativos, dando um ar de vila operária.
Após finalizar a simpática ruinha de paralelepípedos, o professor guiou o grupo pela rua 14 de Julho até chegarem ao Complexo da Rotunda, o ponto alto do conjunto ferroviário. Sua instalação, no início da década de 1940, foi muito esperada, pois ela dinamizaria o serviço da Noroeste do Brasil. Antes disso, as locomotivas precisavam ir até Bauru para que fossem realizadas manutenções. Com a construção do complexo, que conta com a Rotunda, um Girador (que direcionava as máquinas para as baias de conserto) e um abrigo de locomotivas, isso não seria mais necessário.
“A beleza dele está em sua brutalidade e monumentalidade. Hoje existem apenas três rotundas tombadas em todo o Brasil: a de São João Del-Rey, em Minas Gerais, a de Porto Velho, em Rondônia e a nossa, em Campo Grande”, destacou João. No entanto, apesar da grandiosidade desse conjunto, ele encontra-se atualmente abandonado e em estado de degradação. Os visitantes se encantaram com a beleza do local que está em ruínas, tiraram fotos e muitos refletiram sobre a necessidade de um projeto para que o local seja recuperado e conservado.
A partir da Rotunda, o grupo iniciou seu retorno para a avenida Mato Grosso, atravessando a rua dos Ferroviários, que fica nos fundos do estacionamento da Feira Central. Ali, diversas casas de madeira chamaram a atenção dos participantes. Elas indicam mais um estrato social da pequena cidade que era o Complexo Ferroviário, onde moravam funcionários que tinham funções de manutenção e instalação e cuja mão de obra seria temporária.
Após cerca de duas horas e meia de caminhada, o tour chegou ao final, ao lado da Maria Fumaça, em frente ao Ateliê 118, um espaço de cultura urbana que ocupou uma das casas de antigos ferroviários. Para João, poder oferecer atividades como o Campão a Pé é fundamental para a cidade e seus moradores. “Tenho certeza que quem participou vai multiplicar a experiência que teve com outras pessoas, contando que viveu uma ação que quer reconhecer e reviver espaços e memórias ligados a nossa história, cultura, economia e aos nossos problemas sociais e economicos”, explicou. Ele pontuou ainda que o projeto é uma forma de sensibilizar que temos espaços locais belíssimos com poucos investimentos e problemas sociais para serem enfrentados. “Além de um passeio é uma beliscada! É um lembrete de que tudo isso aqui é nosso e que precisamos acordar para isso”, finalizou.
Quem perdeu essa edição da Oficina Campão a Pé, deve ficar ligado. A próxima acontece na manhã do próximo sábado (15) e percorrerá o centro de Campo Grande. A saída é em frente ao Sesc Cultura, na avenida Afonso Pena, às 8 horas da manhã.
A programação do Campão Cultural está um arraso e continua a pleno vapor. Confira o que mais vai rolar aqui.
texto: Evelise Couto
fotos: Eduardo Medeiros