Espaço da resistência, da tribuna livre de palavras e pensamentos e dos movimentos sociais e políticos ao redor dos cafés, bancas de revistas, bancos e lojas no Calçadão da Barão do Rio Branco, centro da Capital, a arte pelo teatro traduziu, na manhã deste sábado (15), com a peça “UBU – O que é Bom Tem que Continuar” – a “Boca Maldita” que se materializou em frente ao Bar do Zé e fez a plateia refletir sobre o delicado cenário político brasileiro.
Já sem o engajamento de outrora, efeito da pandemia e do desaparecimento das gerações mais politizadas, os frequentados do bar ficaram à margem da encenação que ocorria ao lado, onde um fugitivo da Polônia ao chegar a um país imaginário – e das bananas – da América do Sul, assassina o rei, usurpa a coroa e pratica a antidemocrática e a opressão. As bandeiras que tremulavam no calçadão eram dos cabos eleitorais do processo eleitoral vigente.
O local ainda é uma referência da vida política e cultural de Campo Grande, onde a boa resenha olho no olho sobre os rumos da cidade e do Estado, regada ao chope, pastel frito e música ao vi9vo, flui com fofocas, intrigas sobre os adversários e manifestações de toda ordem partidária. A temática política da peça cria uma conexão com velhas discussões no Bar do Zé, fundado em 1953: continuísmo no poder, indignações populares e… corrupção.
Reflexões pela arte
Produção do Grupo Clowns de Shakespeare, de Natal (RN), “UBU – O que é Bom Tem que Continuar” estreou no Festival Campão Cultural, depois de ser montado sem financiamentos e por meio de uma campanha de arrecadação de fundos, com o apoio de outros grupos teatrais. “O Campão foi fundamental pra gente finalizar a montagem e fazer a estreia aqui foi muito especial, com recepção muito boa do público”, disse o diretor Fernando Yamamoto.
Segundo ele, o texto da história inspirada no clássico “Ubu Rei” (1896), do francês Alfred Jarry – que já tem como referência Édipo Rei, de Sófocles – não é uma coincidência da realidade brasileira e latina. “Por mais que você não faça ligação direta, com toda essa polarização precisamos buscar um diálogo que não está acontecendo na sociedade. Pela força poética e da arte, podemos gerar uma reflexão nas pessoas independente do lado que estiverem”, disse.
Yamamoto imaginou uma continuação desse texto, considerado um marco do “teatro do absurdo” e da temática política. Na história original, Pai Ubu assassina o rei e começa a matar a população e tomar seu dinheiro para garantir o trono. Na versão potiguar, os golpistas encontram cúmplices com a mesma índole e fazem de tudo para se perpetuar no poder. “Discutimos as mesmas questões que Jarry abordou, mas aproximamos isso mais do nosso universo latino-americano”, explica.
Platéia interage
A história contada é muito crítica e ácida, levando as pessoas a uma releitura política de seu país e renovar conceitos e posicionamentos. A plateia se divertiu muito com a excelente apresentação e suas sutis pinceladas políticas, que para o bom entendedor basta. “Discute o momento do país, mas sem abrir mão da linguagem popular, da linguagem cômica, de uma comunicação direta com o público, sem precisar citar X ou Y”, segundo o diretor.
A peça foi pensada para ir às ruas, para chegar às pessoas que normalmente não vão ao teatro, e a força poética e suas reflexões sobre temas importantes do cotidiano nacional prenderam a atenção do público, havendo, durante uma hora de encenação, uma troca de “diálogos” entre atores e espectadores. Estes, por alguns momentos, se inserem na teatralidade como coadjuvantes do “marketing” populista do Rei Ubu pela sua reeleição.
Durante a encenação do que seria a produção do programa eleitoral, a plateia acena as bandeiras (brancas) e Ubu beija os populares e dança forró com uma espectadora, por coincidência a também atriz de teatro campo-grandense Fernanda Kunzler. “Assisti as duas apresentações (a primeira foi na Praça Ary Coelho, na sexta-feira, 14) e achei uma peça coesa, dinâmica e lúdica. De fato, um espetáculo, e o improviso da dança foi divertido”, disse.
Texto: Sílvio de Andrade
Fotos: Altair Santos